A Síndrome do Pequeno Poder
Marc era um garoto que
como a grande maioria da sua geração tinha como projeto de vida ter um carro de uma
marca e ir trocando de carro de acordo com o seu poder salarial, mas sempre
fiel à marca. Devido às condições do momento e também ao seu poder aquisitivo,
Marc iniciou e ficou por mais de 20 anos utilizando carros de uma marca alemã.
Como ele era um garoto
vindo da periferia, seu sonho de vida até a vida adulta era ter carros alemães
por toda a vida, pois era uma marca confiável. Pelo seu zelo e sua índole, Marc
sempre teve muitos cuidados com seu carro e também com seu comportamento no
trânsito, tanto que quase nunca teve acidentes e muito poucas multas de
trânsito. Sempre pagou seus impostos em dia e cumpria com as leis de trânsito
perfeitamente.
Já na vida adulta,
Marc começou a perceber que aquele carro alemão, que sempre ele foi fiel, o
estava limitando, pois com seu carro alemão e seu poder aquisitivo não seria possível
atingir distâncias mais longas, conhecer outros lugares mais distantes e
divertidos. Já naquela época Marc sonhava em comprar um carro esportivo, de
outra marca, com outra pegada, para atender seus novos projetos de vida.
Marc sabia que seu carro não o levaria a esses lugares e um pequeno incômodo começou a surgir, já
que ele sempre foi fiel à marca mas sabia que somente um esportivo iria
lhe transformar seu novo sonho em realidade.
Apesar dessa
constatação, Marc permaneceu cumprindo suas obrigações sempre com muita
dedicação, pagando seus impostos em dia, sendo correto como motorista e cumprindo todas as leis de trânsito. Esses fatos lhe causavam orgulho por sua fidelidade, e
também recebia muitos elogios sobre sua conduta no trânsito, inclusive
recebendo bônus da montadora alemã por sua fidelidade.
Há alguns meses o
incômodo de Marc com as limitações que seu carro lhe trazia estava aumentando, pois
o sonho de comprar um carro esportivo para chegar em terras nunca antes
navegadas aumentava muito, parte também que seu carro alemão já demonstrava
sinais que estava ficando ultrapassado, sem novos modelos, mas Marc era fiel a
marca, mesmo sabendo das condições.
Certo dia, já bastante
incomodado ele resolveu tomar uma atitude, e deu entrada no consórcio de um
carro esportivo, mesmo sabendo que seria um parcelamento longo e caro. Sua ideia
era que em algum momento ele venderia seu carro atual e daria um lance maior
para comprar seu tão sonhado esportivo.
Uma noite Marc teria
uma mudança drástica que mudaria para sempre sua vida.
Ele estava passando em
um local escuro e perigoso e como era zeloso pela sua segurança e da família,
ele passou no farol vermelho, mas com cautela, pois não tinha carro vindo de
outra direção.
No carro de trás do seu,
Malaquias, um policial recém-saído da academia e que estava de folga, anotou a
placa do carro de Marc. Malaquias era um evangélico fervoroso. Parte pela
sua ingenuidade e parte pela vontade de mostrar serviço para o novo tenente,
ele tomou o telefone e imediatamente ligou para Ananias para abordar o carro
que passara no farol vermelho.
Ananias, também recém-promovido
devido a sua dedicação, mas também por ser um dos queridinhos da corporação por
ser o leva e traz do seu superior. Ananias seguia com unhas e dentes a cartilha da corporação em busca de destaque e promoções e naquele momento incorporou na
pela a "Síndrome do Pequeno Poder".
Imediatamente após
desligar o telefone, saiu com sua viatura em captura daquele potencial marginal
que ousara passar no farol vermelho.
- Onde já se viu tanta
ousadia? – disse Ananias.
- Estou nesse serviço
para cumprir com minhas obrigações e vou dar uma lição para esse marginal! –
esbravejou para si mesmo.
Então, após algumas
quadras do ocorrido, Ananias abordou o
carro de Marc como se fosse uma grande operação para prender um criminoso muito
perigoso.
Até esse momento
Malaquias estava orgulhoso da sua ação, pois mesmo de folga estava prestando um
grande serviço para a corporação, principalmente agradando ao seu superior.
- Talvez eu seja
promovido mais rápido com esse comportamento – pensou Malaquias. Pela Graça do
bom Deus. E concluiu com um sinal da cruz.
O carro da viatura de
Ananias bloqueou a passagem do carro de Marc, que ficou paralisado com a forma
em que seu carro foi bloqueado pela viatura.
- Devem estar se enganando,
pensou Marc. Nunca cometi nenhum crime.
Nesse momento desceu
Ananias, um jovem que já fazia terapia e roía suas unhas compulsivamente, parte
por sua insegurança, parte por sua inexperiência na função. Combinação perfeita
para a “Síndrome do Pequeno Poder” se manifestar e causar sérias consequências.
- Uma luz fortíssima
foi jogada na cara de Marc, que estava com sua esposa. Ambos automaticamente
colocaram a mão no rosto para evitar a claridade.
- Mãos na cabeça e
saiam do veículo imediatamente! - bravejou Ananias com um megafone.
O coração de Marc
disparou e um turbilhão de dúvidas surgiram na sua cabeça:
- Será que estão me
usando de laranja?
- Não tenho nada a
temer, sempre cumpri com minhas obrigações. Isso só pode ser um engano que
resolveremos assim que tiver a chance de esclarecer os fatos - pensou ele.
Ananias revistou Marc
e pediu os documentos. Por um lapso de memória Marc ainda não tinha recebido o
novo licenciamento, que chegaria em alguns dias pelo correio, e seu documento
estava vencido.
Ananias vibrava de
emoção.
- Temos um criminoso
andando solto pelas ruas. O senhor irá pagar por suas consequências meu senhor. Algemem o meliante e
já para a delegacia – vociferou Ananias já babando de tanto prazer.
Assim Marc, totalmente
sem entender nada, e sem chance de dar sua versão dos fatos, entrou em
desespero.
- Tantos anos sendo correto
e só por passar em um farol vermelho a noite eu estou sendo tratado como um marginal? – lamentava.
Espero que o delegado resolva isso por mim, pois esse policial está totalmente
sem noção do que está fazendo.
Ao chegar à delegacia,
Ananias, com seus quase 100 quilos, entrou na sala do delegado Fabrício, que
também acabara de assumir a função, e que também tinha a “Síndrome do Pequeno
Poder”.
Sem direito a
explicações, Marc, que nunca havia cometido uma falta grave no trânsito e nunca
cometeu um acidente grave com seu carro alemão, foi levado para a cadeia,
colocado juntamente com traficantes, bandidos e assassinos. Ele era um deles na
visão de Fabrício, Ananias e Malaquias.
Marc passou a noite na
cadeia, a pior noite da sua vida.
No dia seguinte,
Ananias e Fabrício o chamaram juntamente com o juiz de direito, e sem nenhuma
chance de defesa, o juiz de direito lhe informou o veredito:
- O senhor cometeu uma
falta grave, infligiu duas leis de trânsito e irá pagar por isso.
- Somente com pagamento de fiança o senhor será liberado. Além
disso, seu carro alemão ficará para sempre retido em nosso posto de comando,
servindo como exemplo aos demais maus elementos como o senhor, que em breve
também iremos dar uma lição. Existem muitos como o senhor por aí, e temos que
limpar essa cidade desse tipo de pessoas.
O mundo de Marc caiu,
ele viu seus mais de 20 anos de comportamento correto ser jogados na sarjeta,
tudo por causa da visão mesquinha, pequena e baixa dos policiais.
Marc estava sem chão,
quase igual ao dia que recebeu a notícia da morte de seu pai.
Ao respirar fundo e
sair da prisão após pagar a fiança, Marc pensou bastante e lembrou que o carro
esportivo, mesmo agora tendo que pagar tudo do bolso, estava lá o aguardando,
pois as primeiras parcelas já haviam sido pagas.
Ele percebeu que foi
até bom terem tirado seu carro alemão, que já estava sendo um peso e o estava
limitando. Pela primeira vez em décadas, se sentiu livre para viver seu sonho.
Agora ele vai dar um
lance mais alto no consórcio, mesmo com prestações mais altas, e vai conseguir
realizar seu sonho e alcançar terras nunca antes navegadas, muito mais belas e
prazerosas.
Para cada Ananias,
Malaquias e Fabricios da vida, existe um Marc, que vale por três, pois o
tamanho do seu sonho é muito maior do que as migalhas por promoções,
reconhecimentos e medalhas de honra ao mérito, que os que tentam aprisionar os
sonhadores se contentam.
Marc saiu pela porta
dos fundos da delegacia, mas dentro do seu coração, ele nunca se sentiu tão
forte e preparado para viver seu sonho.
Para os que vivem da “Sindrome
do Pequeno Poder”, Marc os lamentou e os desprezou, pois não valem nada, são seres
humanos de segunda categoria.
Que todos despertem da
inércia do trânsito parado e dos carros que limitam suas vidas, e que possam
despertar para viverem seus sonhos, deixando Ananias, Malquias e Fabrícios da
vida chafurdarem na lama, pois é lá que eles escolheram ser felizes.
Uma pena para o ser
humano que foi concebido para ser feliz e sonhar.
Nunca desistam dos
seus sonhos!
Que talento para a crônica!
ResponderExcluirFoi melhor para o Marc, com certeza! Ser rodeado de pessoas com essa sindrome, ninguém merece. Aliás, essas mesmas pessoas, em algum momento, irão sofrer as consequencias. Abs
ResponderExcluirCom certeza Kaue!!
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