Avenida Brasil






Quarta Feira 31/10/2012 – 5:10 am

O interfone tocou e desci para pegar o táxi rumo a Congonhas.

Imediatamente ao entrar no táxi comecei a conversa com o motorista, um nordestino que há mais de três décadas  trabalha na rua. Começa seu turno às 20h e vai direto até as 8h da manhã.

Não perguntei seu nome, mas o batizei de Enéas, em homenagem à grande Portuguesa dos anos 70, que comentávamos no dia anterior durante a pausa do café no final da tarde.

Já na descida da Apinagés, Enéas comentou sobre sua esposa, os problemas da relação, a convivência após 30 anos de casado e lançou sua primeira meditação do dia sobre relacionamentos de muitos anos:

- Quem já comeu a carne, também tem que roer o osso.

Enéas conheceu Manuela no táxi. Manuela vinha do Maranhão, morava sozinha em São Paulo em busca de melhores condições de vida. Não tinha família, parentes ou amigos na cidade grande. Como Enéas trabalhava durante o final da madrugada, Manuela sempre estava no mesmo local em busca de táxi para o trabalho. Enéas, ao ver que Manuela era um mulherão, começou a passar sempre pelo mesmo local e no mesmo horário, em busca de atender as carências de Manuela. Após várias viagens, viraram namorados quando Enéas a convidou para um aniversário de família.

Após muitos sanduíches de carne maluca, Enéas amaciou a carne de Manuela, comeu por muito tempo daquele pernil, e agora, o osso dos 30 anos de convivência está sendo compartilhado entre o casal.

Adentramos na Henrique Schaumann, o relógio marcava 5: 20 am. São Paulo nesse horário parece que encurta as distâncias entre as regiões leste e oeste, norte e sul. O ritmo é lento e sereno, contemplativo, remete-nos aos anos 30, quando a cidade ainda atingia seu primeiro milhão de habitantes e o ritmo era lento, mas firme e forte rumo ao destino que a metrópole tinha no futuro.

Cruzamos a Rebouças e os casarões em ambos os lados da Avenida Brasil começavam a surgir no horizonte. O raiar do dia surgia muito ao fundo no horizonte, e as luzes da avenida juntamente com a iluminação dos casarões vieram para fazer parte da moldura das histórias de Enéas.

Quando chegou da Bahia, Enéas foi trabalhar em uma padaria e conheceu Badeco, seu parceiro na padaria, que o batizei com o nome outro ícone da Lusa dos anos 70. A padaria era de Portugueses, e ambos chegavam às 3 horas da manhã para abrir o estabelecimento.

Seu Manoel era português que, como milhões, atravessou o oceano deixando as aldeias de Trás os Montes em busca de um futuro melhor no Brasil. O Rio D´Ouro, que faz parte do quintal das aldeias e faz divisa com a Espanha, tem até hoje um volume maior de água devido às lágrimas das senhoras de preto que ainda habitam aquelas pobres aldeias ao chorarem em amargas despedidas, com o risco de nunca mais verem seus irmãos, filhos ou primos.

Seu Manoel tinha coração bom e pagou estudo para Enéas e Badeco. Enéas era mulherengo, conseguiu fazer o Mobral, mas não tinha determinação para fazer a faculdade. Badeco, mais determinado, se formou médico, e hoje tem consultório de dermatologia em São Paulo. Enéas era um craque com as mulheres e na vida noturna, driblava e finalizava como o seu homônimo da Lusa, mas perdeu para Badeco na corrida da ascensão social na Metrópole, que sempre está de braços abertos para os determinados e mais fortes.

Igreja Nossa Senhora do Brasil
Os casarões da Avenida Brasil emolduravam essa bela história de uma São Paulo que sempre existiu na nossa memória. A Igreja de Nossa Senhora do Brasil surgia imponente ao meu lado direito. Ao fundo a lua brilhava, como que nos iluminasse com um feixe de luz radiante, emitindo energia e vida para dois desconhecidos que por 20 minutos pareciam velhos amigos, confessando suas histórias, alegrias, tristezas e lamentações.


Depois de mais de 20 anos Enéas encontrou seu Manoel, já com 93 anos, ainda vivo, mas com a saúde abalada pela vida sofrida que viveu mas venceu, na cidade grande. Até hoje Enéas é grato por tudo que Seu Manoel fez por ele e por Badeco.

O Parque do Ibirapuera já passara, e os primeiros atletas matinais já adentravam para sua corrida matinal, em busca de adrenalina, energia, melhor qualidade de vida e até para transpirar um pouco do álcool consumido nos happy hours corporativos da terça feira.

A Rubem Berta nos aguardava e as luzes iam se apagando enquanto o astro rei surgia na zona leste para reinar por mais um dia.

Chegamos em Congonhas às 5:35h. Despedi de Enéas levando comigo as histórias acima citadas, buscando registrar histórias de pessoas comuns, batalhadoras e que, quando têm determinação, elas conseguem atingir seus objetivos, mesmo que por linhas tortas, acasos ou obras do destino.

Os primeiros aviões pousaram depois das 6 horas, como se fossem o despertador oficial da cidade, trazendo pessoas do Brasil todo para fazer negócios, conquistar sonhos e também passar por decepções na cidade grande.

O Halloween chegava, com doces e travessuras que a vida pode nos propiciar a cada trajeto efetuado a pé, de táxi ou de avião, carregando consigo histórias e decisões que podem mudar a vida de famílias inteiras, transformando a vida de qualquer cidadão e deixando marcas que podemos registrá-las em um blog ou para o resto das nossas vidas. Tudo dependerá da moldura que queremos colocar na grande obra da nossa existência.


Avenida Brasil - SP




Comentários

  1. Aê, enveredando-se pela literatura...

    Deixar um pouco do time que mais te dá tristeza do que alegria sempre é bom para inspiração!

    E que venham mais delas!

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  2. Muito bom, Marcelo! Escreva mais sobre a vida...gosto muito do seu jeito de escrever!
    Um grande beijo.

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    Respostas
    1. Agradeço seu elogio. Fico orgulhoso e estou pensando num novo livro com essa pegada.

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  3. Opa! Que coisa boa! Escreva sim! Bjs

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