Contadores de Histórias

Nessa semana que passou morreu Walter Abrahão, um ícone da narração esportiva da TV. Durante minha infância eu cresci ouvindo sua marcante voz narrando os vídeotapes dos jogos nas noites de domingo com suas frases célebres: “ Tá Gordo ele hein.” , O jogo ta OXO .


Sim, naquela época jogos na TV somente em vídeotapes, melhores momentos ou as migalhas dos gols da rodada.  Meus primeiros anos acompanhando futebol eram mais de 80% das vezes imaginando as jogadas na minha mente, através dos locutores que eu tenho a honra de nomeá-los Contadores de Histórias. Quantos finais de tarde aguardando ansiosamente os gols da rodada para ver na TV o  que somente tinha sido criado em nossa mente. Gols narrados pelo rádio parecem livros, pois cada um tem sua versão individual das personagens, cenas e movimentos dos fatos.


Até os anos 80 futebol ao vivo era raridade, no máximo aos sábados e sempre com jogos de segunda linha, um time grande contra um time do interior às 16 horas. O Domingo, como sempre, era o dia máximo, não somente para a os católicos que iam reverenciar e agradecer a Deus por mais uma semana de vida, mas também para os torcedores que reverenciavam seus Deuses pagãos ao vivo nos estádios ou através das ondas do rádio. O que seria do futebol sem as ondas do rádio e seus Contadores de Histórias.
 

Esses poetas, que conseguiam traduzir as jogadas como sendo observadores in loco da construção de uma obra de arte de Monet, Picasso, Velasquez.  Além de observadores, esses artistas contavam histórias épicas que ficavam impregnadas em nossas mentes em cada movimento da bola. Um mero lance na linha de fundo virava uma arquitetura de Michelangelo, um arremesso lateral combinado com um drible se transformava em uma pintura de Rembrandt.
 

Cresci ouvindo estes contadores de histórias que transformavam minhas tardes de domingo em conquistas épicas ou derrotas Dantescas. Como mais de 15 anos de minha vida praticamente eu vivenciei as partidas de futebol através do rádio eu considero que escutar um jogo de futebol, principalmente grandes clássicos, como uma grande aventura dentro da nossa mente.  Os contadores de histórias faziam com que os jogos parecessem grandes livros sendo narrados ao vivo. Na minha infância, não sabia quanto esses momentos afetavam minha mente com ler um livro de Dostoievski e Kafka.
 

Meus grandes ídolos do rádio são Osmar Santos, Fiori Gigliotti  e José Silvério. Estes grandes contadores de histórias, além de narrarem as partidas como ninguém,  também deixavam suas marcas personificadas.



OSMAR SANTOS

Um grande rei da comunicação, muito bom humor, sacadas fenomenais  e criador de frases célebres como:

No caroço do abacate – meio de campo

No salão de festas – grande área

É fogo no boné do guarda..... E que goooooooooolllllll!!!!!! 

Ripa na chulipa e pimba na gorduchinha.


Além disso, para valorizar ainda mais os artistas, criou apelidos como Serginho Chulapa, Edmundo o Animal. 

Para mim, o gol do Palmeiras narrado por Osmar Santos que mais me marcou, foi em 24/04/1983 em um jogo contra no Náutico no Morumbi. Palmeiras precisava de saldo de gols para conseguir disputar com Santos e Vasco a classificação para a semi final do Brasileiro. Era um domingo chuvoso e o Palmeiras ia fazendo seus gols até que conseguiu chegar ao sexto gol com Batista aos 42´ do segundo tempo * . Eu comecei a gritar feito um louco e Osmar Santos, parecendo que estava narrando o jogo só pra mim, começou a gritar “ Força Palmeiras, você consegue, Força Palmeiras !!”  Ao fundo a música da Gilberto Gil “ Andá com fé eu vou que a fé não costuma faiá.... " Que emoção, em cada frase da música este grande narrador dizia palavras de força, confiança, virada, e eu pulava feito um louco no meu quarto confiante que tudo era possível.
 

Osmar Santos conseguia traduzir em muito mais do que um gol, os momentos mais emocionantes de uma partida, um gol decisivo, histórico. A narração do gol do Basílio na final de 1977 mostra bem esta marca deste espetacular narrador.
 



FIORI GIGLIOTTI


Um clássico contador de histórias, considerado o último romântico. Narrava as partidas como Carlos Drummond de Andrade. Sua narrativa sutil, sublime, embalando nossos ouvidos  através das ondas do rádio transformando cada jogada em ondas do mar, sutis, refrescantes, prazerosas.



Suas frases clássicas: 

Abrem –se as cortinas e começa o espetáculo....

E o teeeempo passa...

Crepúuuuusculo de jogo torcida brasileira...



Como Palmeirense tenho uma lembrança surreal de uma de suas narrações. O jogo era Palmeiras e São Paulo no Morumbi e chovia muito. Aos 30 minutos do segundo tempo São Paulo faz  1 x 0 e logo em seguida, devido à chuva torrencial, a transmissão sai do ar. Desesperado começo a buscar outras estações,  mas todas saíram do ar, algum problema geral com as transmissões. Parecia que tinha entrado em um buraco negro, sem contato com a humanidade, meu Deus o que está acontecendo?Será que o Morumbi foi abduzido?  Após 10 minutos de amargura, sofrimento,  a voz de Fiori Gigliotti volta a ser ouvida, como que retornando de uma batalha e junto com esta voz uma frase mágica:


“ Aqui no Morumbi o Palmeiras empatou, Beto Fuscão Torcida Brasileiro”
 

Ufa, que alívio!! Creio que esse momento foi único em todos estes anos escutando jogos pelo rádio. Mestre Fiori teve narrações memoráveis dos gols do Palmeiras,  mas para mim, por esta singularidade, foi sua narração mais marcantes.Além disso, esse gol foi um dos únicos 02 gols*  marcados por Beto Fuscão pelo Palmeiras.



JOSÉ SILVERIO

Com certeza foi o contador de histórias que mais vezes eu escutei em toda a minha vida. Sua rapidez nas narrações, acompanhando cada lance como se fosse com os olhos, narrando os gols exatamente no mesmo momento que aconteciam. Fantástico!!!

 Devido eu acompanhá-lo por mais tempo durante minha adolescência, muitas frases criadas por este grande artista ficaram marcadas na minha memória, tanto como os gols mais importantes do Palmeiras que eu já escutei  até agora foram narrados por ele. Frases célebres como:


A bola pedindo me chuta, me chuta, ele encheu o pé!

Dominou , bateu é gol! E que golaaaaço!!

Escanteio pelo lado direito, pé trocado o perigo aumenta!!

Tá lá Ronaaaaldo, pega que é sua!!


Mas a fase mais célebre, inesquecível, inédita e marcante deste grande narrador foi após o gol de Evair na prorrogação contra o Corinthians na final de 1993:

 E agora eu vou soltar a minha voz..... Gooooooooooooooolllllll do Palmeeeiraaaasss!!!!

Evairrrrrrr Camisa 9!” 


Hoje, com a força enorme da TV, aumento do poder aquisitivo, praticamente não escuto mais jogos no rádio, talvez por isso não tenhamos hoje novas grandes narradores, apesar de termos boas vozes . Esses artistas do microfone deixaram suas marcas na minha vida, traduzindo e transmitindo com suas  vozes as emoções de adolescentes como eu ,que sentiam e visualizavam as partidas como num caleidoscópio de imagens em suas vilas, ruas, quartos , salas, bares ou qualquer canto que era possível escutar um jogo e que ficaram para sempre na memória e no coração deste apaixonado pelo futebol.


A Walter Abrão, José  Silvério, Osmar Santos , Fiori Gigliotti, meu muitíssimo obrigado por alegrarem minhas tardes de domingo.

* Fonte " Almanaque do Palmeiras "

Comentários

  1. mais uma vez, sensacional o post Marcelo.... sensacional!

    ainda pequeno em Avaré, aqui no interiorrrrrrrrrrr de SP, ficava grudado no rádio ouvindo Osmar Santos.... Fiori...

    lembro-me do Walter Abrão com um programa esportivo na hora do almoço na Tupi... onde eles sorteavam uma bola "Drible" para os telespectadores..... "Tupi dá bola prá torcida"... e ele e o, salvo engano, Fernando Solera, quando narravam seus jogos, e o jogador mandava literalmente a bola longe do gol eles aproveitavam e falavam.... "Tupi dá bola prá torcida!"... bons tempos... bons tempos!!!

    obrigado Marcelo!

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  2. eai Marcelo, parabéns pelo blog, está para um grande escritor já... mostrei aqui para Roberta e ela gostou muito, elogiou o post.
    um forte abraço do amigo Michel

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